O que a expressão “Deus seja louvado” nas notas de real ensina sobre a tolerância religiosa – e o mau gosto
LUÍS ANTÔNIO GIRON *
O
Ministério Público Federal pede que a expressão “Deus seja louvado”
seja retirada das notas de real para garantir a liberdade religiosa. A
frase deve ou não sair das notas de real ou a discussão é inútil? Os
fundamentalistas cristão andam protestando em todo o país, exigindo que
Deus continue representado nas cédulas. Os politeístas, ateus e crentes
em outras seitas, além dos juristas e partidários da mentalidade
politicamente correta, querem a extinção imediata e sumária da frase, em
nome da garantia da liberdade religiosa em Estado laico.
Misturar
Deus e dinheiro é uma barbaridade. Não importa o seu vínculo político,
religioso e ideológico: Deus, caso você creia nele, não precisa ser
evocado por intermédio da manifestação mais concreta do materialismo,
uma cédula monetária. Além de a expressão representar uma intromissão
religiosa no âmbito do Estado, ela é uma espécie de marca de atraso e de
péssimo gosto. É uma questão ética e estética, além de política. A
expressão me faz lembrar aquelas igrejas que pregam valores cristão e,
ao mesmo tempo, sem o mínimo decoro, convertem Deus em moeda de troca –
ordenando em altos brados, durante os cultos, que os fiéis doem seu
dízimo à causa.
Eu confesso que nunca tinha notado a frase nas
cédulas. Fui lê-la agora, em uma cédula de R$ 10. É repugnante. A
inscrição ao lado da efígie da República me parece ainda mais tola que
os símbolos maçônicos da cédula de um dólar americano – que trazem a
pirâmide e o olho do Grande Arquiteto do Universo. Os americanos pelo
menos têm a justificativa de que a maçonaria ajudou a libertar os
Estados Unidos do domínio britânico em 1776. É tradição. Em 1956, a nota
de dólar ainda incluiu a frase “In God we trust” (Nós confiamos em
Deus). O resultado é que, desde então, a inscrição tem provocado
discussões, processos e paródias (há quem brinque e afirme que a
expressão real é “In Gold we trust”, No Ouro confiamos). Foi até mesmo
tema da campanha do candidato republicano Mitt Romney, que disse que
garantiria a manutenção da frase, caso ele fosse eleito.
No caso
brasileiro, apesar de o país ter sido fundado sob a cruz do catolicismo,
não há outras motivações para estampar nas notas a pregação monoteísta.
Um estado laico obviamente não pode exprimir credo religioso, mesmo que
seja numa discreta inserção em cédulas de dinheiro. E não há nem mesmo a
tradição para evocar. O responsável pela inclusão do critpocatecismo
foi o presidente José Sarney. Em 1986, ele ordenou por decreto que o
Banco Central imprimisse a expressão nas notas da nova moeda, o cruzado,
que substituía o cruzeiro. As primeiras cédulas com a frase começaram a
circular em fevereiro de 1986 – momento em que a moeda nacional estava
sofrendo uma hiperdesvalorização. O cruzado acabou e a frase migrou
primeiro para o cruzeiro restaurado (de 1993 a 1994) e depois para o
real, a partir de 1994. Será que, em 27 anos de circulação, as notas
conseguiram converter alguém? Duvido. Dinheiro serve para ser trocado,
não para emitir mensagens de fé. De qualquer forma, Sarney reclamou que
excluir a frase das cédulas é “perda de tempo”. Então, porque a incluiu?
Uma
sociedade baseada na tolerância, na diversidade e na democracia não é
compatível com qualquer tipo de pregação (nunca pensei que fosse entrar
nesse blablablá de juristas). Imagino o que os cristão sentiriam caso o
Banco Central passasse a estampar no dinheiro frases como “Em Deus não
cremos” ou “Oxóssi reina de Norte a Sul”. É mais honesto deixar as notas
sem inscrição alguma. Será perfeito arrancar Deus do dinheiro. Um
problema é o custo da operação. Essas coisas dão medo no Brasil. Vale a
pena o Banco Central gastar dinheiro e esforço por um detalhe? A solução
poderá ser, caso o Ministério Público vença, o BC emitir cédulas novas
e, aos poucos, retirar de cena a oração que um dia José Sarney talvez
tenha achado que salvaria o cruzado da inflação. Que Deus seja poupado!
*
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre
os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.
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